segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

O Presente: Uma Dimensão Infinita





Está patente em Lisboa, no Museu Colecção Berardo, um conjunto de imagens pertencentes à BESart - Colecção Banco Espírito Santo. Para quem pense que se trata apenas e só da mostra de uma extraordinária colecção de fotografia, uma das melhores da Europa no dizer de uma das suas comissárias, é de sublinhar, desde já, que é muito mais do que isso, é uma extraordinária lição de fotografia.

Iniciada em 2004, esta é a primeira grande apresentação pública desta Colecção, tendo como comissárias Lorena Martínez de Corral e Maria de Corral, esta última também comissária da Bienal de Veneza de 2005. A exposição apresenta-se dividida em secções temáticas - Natureza; Universos Privados; Retratos; Narrações, Ficções e Realidades; Sociedade e Vida Urbana; Conceitos, Ideias e Críticas; Espaços, Lugares, Objectos; Arquitecturas. Intitulada O Presente: Uma Dimensão Infinita, constitui um marco nas exposições de fotografia contemporânea em Portugal, consequência da sua cuidada apresentação, veja-se a conjugação de algumas obras com a paisagem fora das paredes do CCB observada nos espaços envidraçados, da sua diversidade estética, ali cabendo as abordagens enigmáticas e pesadas de Paulo Nozolino lado a lado com o realismo dos espaços fotografados por Candida Hofer (Rijksmuseum Amsterdam II  2003), ou a envolvência de Cindy Sherman, sinónimo também da abrangência estética dos responsáveis pelas aquisições que, apesar disso, nunca descuraram a qualidade. Sinónimo também da riqueza fotográfica da própria Colecção, dotada de alguns dos nomes mais sonantes da fotografia mundial. 

Em toda a mostra é nítido um diálogo de formas distintas de ver e sentir a fotografia. Aliás, este é um dos pontos fortes desta colecção, assumido no catálogo que acompanha a exposição. Ácerca desse catálogo, destaque para a sua componente informativa e para a sua qualidade gráfica e de impressão, a fazer lembrar um outro editado aqui há uns anos (Waterproof / À prova de Água - Jorge Calado 1998).

Se é verdade que a exposição possui a marca da memória e da História da própria Colecção, ela constitui também uma viagem pelos sentimentos. Vejam-se as imagens de Adriana Molder, onde uma luz sentida e interventiva marca a sua presença, levando-nos a uma hesitação interpretativa entre a fotografia e a pintura. É também o caso da intimidade transmitida por Irving Penn (Football Face 2002), da força e da presença do palhaço (sem título - série Clowns  2004) de Cindy Shermam, misto contraditório de realidade e artificialidade em que a artista se transforma e auto-retrata, ou os magníficos retratos de travestis de Nan Goldin (Mysty in Sheridan Square 1991), em que o olhar do personagem principal interage connosco, olhando-nos directamente nos olhos, marcando a sua presença pela atitude, formas, luz e posicionamento, num contraste com o polícia em segundo plano que, de forma diferente, parece também conversar connosco. É clara a cumplicidade e a envolvência de Nan Goldin com as pessoas que retrata, algo que tem tanto de dificuldade quanto de atingir um estádio superior da expressão artística em fotografia.

Neste passeio pela fotografia contemporânea é evidente que não podemos esquecer a capacidade descritiva de Andreas Gursky (Dior Homme 2004), que não sendo dos seus trabalhos mais marcantes, não deixa de constituir uma referência importante na colecção. Esta capacidade de descrição do ou dos objectos, tão característica de alguns dos trabalhos de Gursky e que um dos caminhos da moderna fotografia destaca, é baseada em realidades da cultura de massas, tão comuns na nossa vida diária que muitas vezes um olhar menos cuidado é impelido a desvalorizá-la de forma injusta. Nesta linha dos espaços e do sentir que eles despertam, não podemos deixar de referir o trabalho de Thomas Strouch (Shangai Panorama 2002) com uma obra já conhecida nos circuitos internacionais e uma das primeiras a integrar a Colecção, ou a luz fabulosa, com a intimidade e mistério que ela desperta, dos cenários de Stan Douglas (La Casa de la Moneda 2004). 

Em matéria de interpretação de espaços paisagísticos é de sublinhar o trabalho de Mitch Epstein (Amos Coal Power Plant 2004), cuja expressividade cromática de uma realidade presenciada pelo fotógrafo não nos deixa indiferentes.Refira-se que no trabalho de Mitch Epstein está bem presente também uma clara influência do cinema e do vídeo.

Os diferentes núcleos em que se organiza a exposição reflectem uma ideia estrutural que serve de suporte não apenas à própria Colecção, mas também à exposição, prova de que o comissariado soube interpretar todo o sentido da Colecção. Por exemplo, nos temas de Natureza é de notar a contemporaneidade e a abrangência interpretativa da ideia de paisagem, desde o romantismo de Joshua Cooper (The Azores 2004), à manipulação de escala de Gursky (Schnorchler 1998), que nos faz sentir pequenos no seu universo, ou onde Isaac Julien (Westem Union Series nº 2  2007) nos obriga a esfregar os olhos, sem termos a certeza de que estamos perante aquelas imagens no ambiente calmo e acolhedor daquelas salas ou se estamos perante a paisagem gélida e inóspita que retratam.

Seria injusto esquecer os fotógrafos portugueses presentes nesta Colecção, cuja qualidade indiscutível se traduz pela sua constante presença nos vários núcleos desta exposição. Destaque para Helena Almeida, agora com mais uma grande exposição em Espanha, Augusto Alves da Silva, Duarte Amaral Neto, Daniel Blaufuks, Gérard Castello Lopes, António Júlio Duarte e muitos outros, o que significa, simultaneamente, a qualidade da produção artística portuguesa, ainda que desejássemos uma maior e mais rápida renovação, e a confirmada responsabilidade social do BES, na área da cultura e da arte, ao apoiar a fotografia portuguesa. Disso é exemplo o facto de, nesta exposição, se poderem encontrar lado a lado nomes consagrados dos circuitos expositivos internacionais com jovens valores da fotografia portuguesa, algo que não é muito comum em Portugal, ainda que experimentado no passado (edições dos Encontros de Fotografia de Coimbra, edições dos Encontros de Imagem de Braga, Bienal de Cascais 2000).

A diversidade dos olhares presentes permite-nos também reflectir sobre a Fotografia, o que é, o que se faz e o que se reivindica de artístico. Permite-nos interrogações sobre os circuitos fotográficos nacionais, por vezes comparando-os com realidades não muito distantes, que nos mostram que caminhamos no sentido do acentuar do fosso entre as manifestações artísticas que possuem uma qualidade indiscutível e aquelas que, infelizmente, não a possuem, em diferentes suportes expositivos e de contacto com o público. Por tudo isto, mais uma vez,esta mostra da Colecção BESart é uma excelente lição de fotografia.  

3 comentários:

  1. Há muito que não lia comentários como este. Informação completa e sustentada.

    TSC

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  2. bom artigo, parabéns, discordo um pouco dos "capitulos" em que as comissárias fizeram a mostra, mas o que seria do mundo se todos concordássemos uns com os outros. Adiciono apenas uma nota para o catálogo/book, que dá a conhecer toda a colecção (apenas parte dela está exposta), com notas para cada autor e trabalho, permitindo também a uma série de críticos, comissários e curadores expressarem-se sobre os trabalhos.

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  3. Sem dúvida uma exposição a não perder.
    Apenas a distribuição algo labirintica das fotografias me meresse um reparo menos bom.
    O catálogo com uma boa relação qualidade/preço será sempre uma excelente aquisição, mesmo fora do âmbito da exposição.

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