domingo, 19 de abril de 2009

Imagens Imaginárias


Certa vez, numa das minhas explorações fotográficas, fui surpreendido por um homem simples, que considerei fotogénico. Perante a minha pergunta se lhe podia tirar uma fotografia, respondeu-me "Ó amigo! Esteja à vontade! Eu entendo a fotografia!... A fotografia é quando uma pessoa vê uma imagem real e essa imagem lhe chama a atenção para fazer outra imagem...". Nunca mais esqueci aquela frase. Um homem simples revelou-me em poucas palavras a essência da fotografia. Uma imagem produzida a partir de uma imagem real. Brilhante! Nunca soube o nome de tal filósofo, de modo que não o poderei incluir neste texto. Mas aquela frase não me largou mais...

Repare-se na expressão "imagem real". Não é referida a realidade, mas antes, "uma imagem real"... Esta pequena/grande diferença, faz toda a diferença, já que, quando observamos algo, seja o que for, não é de realidade que falamos, mas da nossa projecção mental sobre ela. No momento em que observamos, começamos a construir a nossa imagem... Na verdade, a verdadeira construção começa bem antes, já que transportamos para a nossa observação, as nossas memórias, gostos e referências culturais. 

Carregados com toda essa informação, começamos a imaginar a imagem. Imaginar, aqui com duplo sentido, sendo que um deles dirá respeito ao imaginar cognitivo e, o outro, a todo o processo da realização da imagem, ou seja, o imaginar perfomativo. Será, então, esse duplo imaginar o responsável pelo surgimento da imagem fotográfica. Mas o processo não pára por aqui...

Depois, as imagens geram outras imagens...

Tal como acontece com a "imagem real", quando vemos uma determinada imagem, nunca a vemos simplesmente como ela é, mas sempre comparada a referências de outras, fruto das tais memórias a que já me referi... Por sua vez, após vermos uma imagem, essas nossas referências/memórias alteram-se, o que leva a que vejamos as imagens seguintes (que poderão ser as mesmas) de outra forma... No fundo, quando vemos uma imagem, imaginamos outra. Ou melhor, em bom rigor e tal como acontece na realidade, não vemos, de facto, a imagem, mas uma sua representação ou, por outras palavras, a imagem da imagem. Eu chamo a essas imagens (as imagens que imaginamos) precisamente "imagens imaginárias"... Depois, munidos dessas "imagens imaginárias" podemos produzir ainda outras imagens, essas já "imagens imaginadas" (porque já realizadas), sendo esse um processo evolutivo em espiral. Assim, e agora de forma mais completa, ao vermos uma imagem fotográfica, não vemos somente "uma imagem imaginária". Vemos sim, uma intrincada conjugação entre a "imagem real", a "imagem imaginada" do autor e a nossa "imagem imaginada". Uma autêntica "carga imaginária", portanto... 

Depois, ao produzirmos as nossas próprias imagens, com essa "carga imaginária", remisturamos tudo novamente e acrescentamos-lhe ainda mais "carga". Desta forma, as imagens reproduzem-se, num processo não muito diferente (se apenas considerarmos os aspectos semânticos) da reprodução da vida. No caso das imagens obtidas por processos fotográficos a analogia com a vida torna-se mais evidente, porque as imagens assim produzidas, partem da vida, das suas manifestações e condições de sustentação. E quando geram outras imagens, voltam a recolher da vida a matéria prima para a sua construção. Esta reprodução de imagens é, assim, infinita. Mas não só em termos físicos, materiais, já que ela tem ainda outra faceta, mais mental ou espiritual, que será a de nos levar a ver algo que não veríamos sem a sua existência. 

Será que uma simples imagem ("real" ou "imaginada") tem o poder de nos revelar uma realidade que não veríamos de outra forma? Como se tivesse um qualquer poder oculto capaz de nos "iluminar" ? Esta é uma pergunta que ainda me inquieta e para a qual não tenho resposta definitiva, a não ser... Sim, claro! pelo menos, algumas imagens fazem-no certamente.

Somente a título de exemplo, vejam-se as imagens de Steve McCurry... Por exemplo, o famoso retrato da rapariga afegã... Trata-se apenas de um retrato... Apenas? Aquele retrato revelou-nos uma cultura, uma condição de vida para a qual o comum cidadão do chamado "mundo ocidental" não estava, de modo nenhum, sensibilizado... Um retrato, apenas, mudou esse paradigma. Aqueles olhos, aquela expressão..., o sofrimento, o encanto..., a vida e cultura de um povo ali espelhada. Numa única face. 

Muita tinta correu por esse mundo fora, a propósito desse retrato. Muitas consciências se abriram... O próprio Steve McCurry ficou como que prisioneiro daqueles olhos. Aquela imagem tinha de gerar imagens! E gerou. Após uma complicada e dispendiosa expedição, uma outra imagem surgiu... 

No entanto, os olhos que antes brilhavam, que desafiavam, são agora tímidos. Agora quase pedem para que não os maltratem mais. O que mudou? Nada... e tudo. Foi a vida, o que se passou entre as duas imagens. A primeira imagem  sugere-nos o quão dura pode ser uma vida. A segunda confirma-o, apresentando-nos essa dureza de forma brutal. Será que imaginávamos a segunda imagem antes dela ter sido realizada ("imaginada")? Talvez "imaginássemos" (no sentido de "imagem imaginária"), mas o acto de vê-la, foi verdadeiramente uma revelação. 

Muitos outros exemplos poderia ainda dar, mas não creio que nenhum outro pudesse ser tão ilustrativo. As imagens são isso mesmo:- uma representação de algo que as ultrapassa, que as transcende enquanto simples imagens em suporte físico. E ao mesmo tempo, uma autêntica revelação. Algo em nós muda, ilumina-se, quando vemos certas imagens.

João Paulo Barrinha

www.stevemccurry.com/main.php é o site de Steve McCurry que aconselhamos vivamente a visitar, como exemplo ilustrativo do texto acima publicado.     

5 comentários:

  1. Espectacular este artigo. Na verdade a espiral ascendente de que o autor fala não é mais do que a educação visual que cada um adquire ao longo do seu percurso fotográfico. É uma reflexão interessante de alguém que pensa a fotografia. Parabéns.

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  2. gostei. parece que vou começar a andar por aqui.

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  3. Bem escrito, Sr Barrinha. Permito-me discordar, mas não muito, apenas numa questão semântica que é a da utilização da "imagem real" em detrimento da imagem da realidade. Aparentemente não existe nenhuma "imagem real" senão não era imagem, mas sim real, mas quiçá empregaste essa noção como facilitadora do magnifíco aforismo que te deu o cavalheiro que encontraste. No mais comungo da teoria de representação pós-modernista, o que "vemos" é imagem, projectada no mundo pelo acto de ver/imaginar/pensar/sentir, aliás creio que de modo ainda mais fundo tudo o que vemos é ilusão de real, tornada possível pela mera identificação com esse real, que de forma materialista exclui o que está para além dele. Máquinas fotográficas, olhos, sentidos, pouco ou nada parecem ver, mas nesse mistério reside a beleza da fotografia, qual acto meditativo, que deixa entrever a possibilidade de parar a ilusão da projecção. Grande abraço.

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  4. Agradecido. Já agora, aproveito para apresentar o homem que me disse a frase que reproduzo no inicio do texto: http://1.bp.blogspot.com/_qeKbG3wxyIQ/SB40lg_GF0I/AAAAAAAAA6M/olQnzsRrF88/s1600-h/Picacuca-Homem-conversa-3.jpg

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  5. Gostei muito deste texto e concordo na sua essência.

    [Por acaso há umas semanas estive a reler o artigo da National Geographic que falava sobre o dia em que a foto foi feita, a pesquisa incessante à menina e do seu reencontro com o fotógrafo. Muito bom.]

    Sandra Costa

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