sábado, 14 de março de 2009

As fontes discretas


Os inúmeros mestrados e doutoramentos que se vão efectuando no campo da fotografia não chegam a ser fontes de conhecimento, porque se mantêm no grupo restrito da acção académica e raras vezes, muito raras vezes, as teses são publicadas. O que, no limitado panorama nacional da publicação fotográfica é mesmo um pecado.

Seja esta dissertação de mestrado de Catarina Miranda, defendida já em 2006 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, A Retratística em Portugal e a Introdução da Daguerreotipia (1830 - 1845)

Trata-se de um período fundamental, génese de muitas simplificações e determinante para todas as reflexões sobre a modernidade e adequação portuguesa ao progresso da fotografia amadora e profissional. Depois de Gisele Freund habituámo-nos a pesquisar e encontrar o testemunho de um ou outro desenhador que teria passado a usar o daguerreótipo, tudo inserido na difícil e obscura luta de interesses de um grupo profissional que sempre se manifesta com a evolução das técnicas. Com esta investigação detalhada entramos deveras no universo dos pintores e desenhistas, que de uma forma significativamente "iluminista" iam ensaiando e por vezes produzindo a série de maquinismos que facilitam a visão e a reprodução da Natureza e da figuração. E então o daguerreótipo insere-se numa busca profiada de uma máquina de representar que demonstra essa atitude tão comum da modernidade: a criação de máquinas, dentro do paradigma moderno da Física Mecânica e do progresso do Homem. Procura-se, de facto, o caminho da cópia e da individualização, é todo um mundo que se modifica económica, social e culturalmente. 

O trabalho divide-se em três partes, I - Antes da chegada da fotografia; máquinas de desenhar, espectáculos ópticos; II - A introdução da Daguerreotipia; III - A Retratística: Retratos; Miniaturistas; Daguerreotipistas. Fica esclarecido o mundo das máquinas de ver e de mostrar, máquinas ópticas, que vão surgindo para resolver o problema fundamental do Iluminismo, o conhecimento para todos, que se irá reflectir no elitismo dos construtores de autómatos continentais e na Revolução Industrial inglesa e flamenga e, naturalmente, na Enciclopédia: câmara obscura, câmara lúcida, silhueta, fisionotraço ou fisionipo, pantógrafo...

Numa época de todas as revoluções a imprensa elitista ou a mais popular dos papéis volantes explode em explicítações e quantidade. E é precisamente através da imprensa que este trabalho se levanta; Catarina Miranda pesquisa nesta literatura o fluir das invenções, das comunicações e dos hábitos. E então a dissertação transforma-se numa História de Mentalidades que se alimenta de uma História do trabalho (dos desenhadores e pintores aos impressores e especificamente aos litógrafos e o público-alvo para quem estes trabalham), numa História de costumes e hábitos em ciclo de mudança, numa História da aparência que irá caracterizar os dois últimos séculos. Vemos a evolução dos grupos sociais da burguesia a marcarem a presença da sua virtude e notoriedade pessoal substituindo a linhagem que unifica, vemos ainda um público imenso a acorrer aos espectáculos ópticos (como a narrativa do espectáculo de fantasmagoria de lanterna mágica, em 1800, na Rua Augusta, em Lisboa, quando do nascimento da infanta Dª Maria Francisca), sem que não deixem de se manter mesmo quando a daguerreotipia domina. E ficamos a saber da produção nacional destes espectáculos, dos temas escolhidos, da irrupção do gosto pelo património, pelas campanhas de Napoleão, pelo exotismo oriental.

A introdução do daguerreótipo é detalhada, o espanto pela perfeição, a divulgação reiterada na imprensa comum ou científica e a crescente vulgarização do conceito como informação, antes da sua prática por estrangeiros e portugueses. De forma minuciosa fica esclarecida a transição dos desenhadores, pintores e miniaturistas para a daguerreotipia; a lenta inserção no Portugal Pitoresco, o papel da galvanoplastia que então dominava o "parecer ser" nacional no início de quarenta e que dá um novo fôlego às imagens dos gravadores e essa individualização crescente que se verifica na selecção dos retratados, agora utilizando os retratos como publicitação de ideias (cartismo, cabralismo) e instituições.

A investigação põe em causa muitos dos velhos chavões que a nossa História da Fotografia foi repetindo e não deixa nunca de levantar argumentos contra afirmações que a consulta dos jornais invalida. Aqui e ali dão-se conta dos sucessivos inventos e adaptações portuguesas a metodologias conhecidas. Aprendemos que o interesse pela representação é profundo, que há um público numeroso para as sucessivas produções de desenhos impressos (reis, princípes, políticos, acontecimentos, artistas, cantoras de ópera, temas religiosos). E, com isto, também se aprende que o daguerreótipo, apesar da perfeição da reprodução, não respondia, pela sua tradução na xilogravura e, crescentemente, da litografia, à necessidade de possessão do público da imagem, que já existia com a divulgação quase popular do desenho. O que explica a manutenção deste na impressão e a aceitação repentina da reprodução fotográfica em papel nos finais dos anos cinquenta. 

Uma História da Fotografia é necessariamente global, imbrica nos inúmeros domínios do social e só assim nos faz entender o que representa. E, ainda, como lápis da Natureza a fotografia passa a filosofia do tempo e da vida interior do sujeito.

Maria do Carmo Serém
 

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