quinta-feira, 15 de julho de 2010

Trapalhadas

A Constituição portuguesa, presentemente em vigor, refere no seu artº 73º , parágrafo 1, que todos têm direito à educação e à cultura. O próprio Estado, segundo o artº 78º, nº 2 alínea a, assume a responsabilidade de incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos á cultura e, através dela, corrigir as assimetrias existentes no país, tomando como exemplo a oferta de ensino artístico especializado ou a realização de eventos culturais. Mais, na alínea c deste mesmo artigo, o Estado assume também o dever de promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, enquanto que na alínea e se fala mesmo em articular a política cultural com as demais políticas sectoriais. Em face disto há que reflectir sobre as funções do Ministério da Cultura e sobre as políticas culturais implementadas pelo governo nesta Europa a vinte e sete. A propósito, não nos esqueçamos de que o programa de governo para a Cultura assume esta como factor estratégico de desenvolvimento integrado e promete internacionalização, descentralização e transversalidade.

Entretanto, a cultura viu o seu orçamento reduzido em 20%. Não, afinal são 10 % com uma explicação confusa da ministra. Não, são 12,5%, não sei bem porquê e anunciado pelo governo. Afinal não há mesmo redução, afirma também a ministra. Pelo meio um fotógrafo recusou um prémio, o Director Geral das Artes demitiu-se, um cineasta saiu em defesa de produtores e realizadores, muita gente do meio artístico ficou petrificada, não com a falta de apoio, que a isso já está habituada, mas com a insensibilidade e com as trapalhadas num desgaste político desnecessário.

Num país pouco sensibilizado para a prática do mecenato, é impossível não haver consequências negativas nestas reduções orçamentais. Num discurso que, diga-se, já não é novo, dizer que se pode fazer mais com o mesmo orçamento ainda causa espanto, mas com menos?

Nesta batalha de convencer os portugueses de que a cultura é fundamental, há que não esquecer de que Portugal está na cauda da Europa em matéria de hábitos de leitura. Os portugueses gastam também cada vez menos tempo a ler, seja um livro seja um jornal. Segundo um inquérito europeu efectuado em 2002 apenas 32,7% dos portugueses havia lido um livro nos últimos doze meses contra 57,9% de média dos europeus. Apenas 25% dos portugueses liam diáriamente um jornal contra cerca de 46% dos europeus, e 25,5% dos portugueses declaravam mesmo nunca ler jornais. Lembremo-nos ainda de uma sondagem RTP/Público, feita em Dezembro de 2003 pela Universidade Católica que concluía que, num período de seis meses, 45% dos portugueses não tinha frequentado nenhum evento cultural e que mais de 50% não tinha adquirido nenhum livro. Nos últimos cinco anos este panorama pouco mudou.

Claro que depois há os chamados agentes culturais e as indústrias da cultura, tão modernos que eles são nas feiras e demais eventos culturais. Em entrevista ao jornal Público (25 de Junho) a actual ministra da Cultura sugeria a existência de protocolos com o Ministério. Tem ar de promessa ligeira para o frágil tecido cultural português.

Para que exista consumo cultural há que criar condições. Quem diáriamente contacta com os organismos centrais ou com as autarquias vê o quanto é difícil defender, ou simplesmente divulgar, o nosso património cultural e histórico. Poderia dar-vos inúmeros exemplos de locais encerrados, cuja possibilidade de visita depende da deslocação de um técnico cujo gabinete se situa noutro ponto do país. Poderia dar-vos exemplos do desinteresse de algumas autarquias em divulgarem ao público o seu património, poderia ainda dizer-vos de como inúmeros técnicos olham para as empresas relacionadas com a investigação histórica, ainda que seja óbvio que a fruição dos bens culturais potenciem a indústria do turismo.

Há que perceber que o património histórico e artístico constitui uma mais valia, um sinal de diferenciação cultural e uma ferramenta de desenvolvimento ligada à economia. Há que equacionar o papel da figura do agente e produtor cultural na malha das políticas e estratégias culturais do país. Igualmente há que reforçar a componente educativa das estruturas culturais, públicas ou privadas, apoiadas na formação contínua e na criação de públicos e de aquipamentos de entrada.

Vivemos hoje num mundo extremamente competitivo onde a qualificação profissional, a educação e a cultura são investimentos fundamentais. A cultura é vista por muitos países como uma opção estratégica onde a política externa no plano cultural tem um valor económico e político de relevo. Os portugueses só terão melhores salários e poderão fazer com que o seu nível de vida se aproxime dos padrões europeus se cada um, em conjunto com os poderes públicos, olharem para a cultura como um investimento de médio prazo. Um trabalhador com formação académica e cultural será sempre um trabalhador mais produtivo e mais bem remunerado que outro que não a possua.

Pensemos no caso específico da fotografia. Existe (?) um Centro Português de Fotografia cuja função é recolher e preservar o espólio fotográfico português. O espólio é dividido por arquivos e entidades várias, apenas e só porque nunca houve coragem política para acabar com outros serviços (do Estado) com a mesma função e juntar tudo na mesma entidade, que para isso foi criada e dimensionada. Quanto ao preservar não constitui problema, já que há muito deixou de ser adquirido ou procurado qualquer espólio e, nada sendo adquirido, também nada de novo há que preservar. Vão-se fazendo uma exposições, como qualquer entidade privada. Quanto ao prémio Pedro Miguel Frade, nem vê-lo. Acabou sorrateiramente. Outroa prémios também acabaram. Quanto a novos valores, procuremo-los nos “novos talentos” da FNAC!...

Surge-nos assim um prémio dado ao fotógrafo Paulo Nozolino. Merecido. Muito se escreveu e de forma falsa e irresponsável em fóruns e blogs da internet. O Paulo Nozolino não queria pagar os impostos, que afinal a declaração de ausência de dívidas ao fisco e à Segurança Social é comum a qualquer empresa, etc., etc. Afinal, tudo isto é consequência das trapalhadas vividas nos últimos tempos. O fotógrafo não realizou qualquer trabalho, logo não tem que passar qualquer recibo, logo não tem que comprovar nada. Elementar. Recebeu apenas um prémio. Um prémio é um reconhecimento por algo, não é uma prestação de serviços. Um prémio tendo um valor anunciado, deve ser recebido por inteiro, e não com um valor anunciado, com pompa e circunstância, menos uma redução decidida administrativamente. Também me parece elementar. Ou então deve ser anunciado por um valor mais baixo, um valor já a contar com essa redução. Trapalhadas... desnecessárias!

3 comentários:

  1. a manifestação da minha "estranheza" decorre de eu saber que o paulo nozolino (o premiado) recusou o prémio como protesto de lhe querem cobrar irs (que não é cobrado noutros prémios), considerando isso uma discriminação negativa das artes (no que tem absoluta razão) e, ainda por cima, lhe pedirem um recibo verde, que é absurdo ainda maior porque ele não prestou de facto serviço nenhum... foi premiado, sem sequer ser no âmbito de um concurso a que tenha recorrido!...

    (para mais informação deste escândalo podem linkar a http://www.publico.pt/Cultura/paulo-nozolino-recusa-premio-do-estado-em-que-e-cobrado-irs_1444911 e perceber melhor esta desvergonha... internacional).

    eu procuro o mail dele para o cumprimentar. se alguém souber, por favor, que mo indique. e sugiro que procedam junto da dgartes, do próprio ministério da cultura (ou talvez melhor do primeiro-ministro para pôr esta equipa do sector de patins na remodelação que cheira vir aí) ou como melhor entenderem: ou criticando directamente a atitude do organismo ou apoiando a atitude do artista ou manifestando a mesma estranheza pela dgartes não anunciar o prémio... ou, se alguém o souber como fazer abrindo mesmo uma petição on-line.

    nada me move de interesse directo, m,as isto parece-me bem mais razoável do que as manifestações contra o corte dos ditos 10%, que eram 5% porque não retroagia e 50% ou mais dos financiamentos de 2010 já estavam pagos. esse corte podia aceitar-se na base de uma política geral de contenção da despesa pública, embora o sector da cultura, fragilizado como está, não devesse ser ainda mais penalizado; porém neste caso estamos perante uma questão de fundo bem mais grave e não de circunstância, que urge criticar com mais veemencia e num acto que demonstra perante a opinião pública justamente a ideia contrária que ela forma dos artistas como "mamões"... o acto do paulo nozolino não é um acto corporativo, é um acto de dignidade que, acho eu, merece o nosso aplauso a ele e a indignação perante um estado que nestas coisas é que mostra claramente como trata e despreza a cultura.

    redivulguem, protestem, solidarizem-se...

    abraço,

    castro guedes

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  2. Se querem saber acho que aquilo qre se afirmou em relação ao Paulo Nozolino tem a ver com duas permissas: que os Artistas são, no geral, uns calaçeiros,e outra,bem mais grave aliás,que é o de o prémio ser dado a um fotógrafo.
    Por isso as alarvidades dos comentadores do regime,nos diversos blogues(alguns mui "sérios")...a "outros" nem lhes mereceu qualquer análise.Tivesse algo de semelhante, acontecido com a Sra dos guardanapos,e esta merda até subia á assembleia da ré-publica!Luis Reis

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