terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Sem companhia

A partir do próximo sábado, no Centro Português de Fotografia, no Porto, será apresentada Sem Companhia, de João Trabulo. Transcrevemos o texto do autor, sobre o seu projecto, suficientemente elucidativo do sentir das imagens e da abordagem efectuada.

“As prisões são todas iguais. As prisões são sítios estúpidos. As prisões são verdadeiras escolas. Não se desaprende nada em reclusão, aprende-se tudo, o crime e os maus hábitos. Tudo é negócio e poder, não há espaço para qualquer tipo de solidariedade entre as pessoas.

Não vi um único rico na prisão. Não os vi porque simplesmente não existem. Todos os presos são lavradores, pescadores, carpinteiros, trolhas, ciganos, alcoólicos ou emigrantes de leste. Centenas de miúdos delinquentes saídos de famílias e de bairros problemáticos que mal passam dos 18 anos.

É preciso deixar de fora essa ideia romântica que podemos fazer um filme com presos como se fossem pessoas comuns. Não são, nunca serão. Em centenas de presos que conheci, não há um único que não estivesse a representar um personagem inventado por si ou pelos outros presos. Há papéis, grupos étnicos, passa a ser a malta do ginásio, das cantinas, das escolas, das alas prisionais. Compreendemos quem dá ordens, quem se submete, quem é o bufo. Quando se percebe isto estamos preparados e a aventura pode começar.

No princípio ganha-se tempo e compreendemos o território que pisamos, aceitando o que nos oferecem. “O vento sopra onde quer, ouves o seu barulho, mas não sabes de onde vem nem para onde vai”, lapidar frase da bíblia ouvida no filme Un condamné à mort s’est échappé de Robert Bresson, é só isto. Depois, o filme arranca e encontra o seu próprio caminho através de um diálogo permanente entre documentário e ficção.

Dentro da prisão encontro homens despidos de convenções, mais sóbrios do que qualquer actor profissional nas mesmas circunstâncias. Tive que me fazer uma reputação lá dentro e conquistar o meu próprio espaço. De certa maneira fui admitido, eu e o resto da equipa, isto é, o meu operador e director de fotografia, Miguel Carvalho. O filme não é só meu, também é dele, é de todos.

O desafio é fotografar o incorpóreo, o movimento selvagem destes homens face à sociedade, guiados apenas pela imaginação e utopia. Estar confinado numa arena com vários personagens que se situam à margem de tudo e fazer avançar um pouco as coisas, apesar de nunca sabermos ao certo como se deve filmar isto ou aquilo dentro de um espaço prisional quase sempre hostil. A cada dia de rodagem se ganha um pouco mais de coragem contra a ilegalidade.

Ernesto e Gaspar, os personagens principais do filme, participam activamente na construção da história. Apesar das adversidades, a confiança entre nós torna-se indestrutível. A minha admiração por eles aumenta todos os dias, à medida que o filme avança por trajectos de vida, passagens quase sempre instáveis e perturbadoras. Através deles o filme ganha uma moral, uma memória. Outros presos juntam-se ao bando através dos seus actos e gestos simples. Somos uma equipa, uma espécie de guerrilha que brinca ao cinema. Escrevemos cenas para filmar e repetimos até à exaustão. Ninguém arreda pé. Intuitivamente todos percebem que um filme pode ser tudo, maior que a vida, ou nada de especial, construído aos bocadinhos todos os dias. Vamos filmar como se fossemos trabalhar para a fábrica. Cada um sabe o que tem a fazer e o que importa são as emoções lançadas no ar ao longo do dia. E assim fazemos, com a mesma disciplina e ética de marcarmos encontro para outras sessões no dia seguinte”.

João Trabulo

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