quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Estamos no Mesmo Sítio 1970 - 2010

Há muito que o Arquivo Fotográfico de Lisboa faz parte do meu roteiro de exposições, apesar de cada vez mais andar a esquecer o seu público. Depois de tempos áureos, onde desempenhou um importante papel na fotografia portuguesa, tem vindo a ser diminuído na sua função e programação. Nota-se a falta de uma linha de programação coerente, salvando-se apenas pela aposta em valores garantidos que garantem algum público e a sua tarefa importante enquanto espaço de investigação e de preservação e apresentação de espólios. É uma falta de ambição aliada à mera sobrevivência. Talvez por isso o Arquivo Fotográfico, fazendo parte dos Arquivos Municipais, se está a transformar em “núcleo fotográfico”, vá-se lá saber porquê (vejam-se já as folhas de sala). É uma desvalorização de quem não sabe a riqueza do que tem nas mãos seguindo, conciente ou inconscientemente, os passos do moribundo Centro Português de Fotografia. No momento em que algumas instituições internacionais criam grandes arquivos de imagem, nós vamos desmantelando os que temos ou criando uma rede de acesso complexa (ex. Arquivo Fotográfico na Torre do Tombo). Depois de inexistente, talvez daqui a uns anos retomemos a ideia “inovadora” de criar arquivos de imagem. Mas passemos a estamos no mesmo sítio 1970-2010, a exposição patente no Arquivo Municipal de Lisboa.

Ao fazermos a História do fotojornalismo português não podemos deixar de fazer uma referência às imagens de Alfredo Cunha (n. Celorico da Beira, 1953). Longe vão os tempos de Disparos (1977 – na folha de apoio está 1976 por lapso), onde um texto de Maria Antónia Palla nos caracteriza de forma excepcional o trabalho de Alfredo Cunha. Apesar de tudo, eram imagens simples e directas, ingénuas talvez, quando comparadas com esta retrospectiva patente do Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa.

Neste percurso há duas obras de Alfredo Cunha que são importantes referir: Naquele Tempo (1995), onde já se vislumbra o jeito de retrospectiva e com uma impressão tipográfica incomparávelmente superior a Disparos, e O Melhor Café (1996), trabalho feito tomando como tema A Brasileira, em Braga, e um dos trabalhos mais interessantes de Alfredo Cunha. Faláva-se nesse tempo (e hoje) em conceito de projecto fotográfico. São estes marcos que levam ao apuro do fotógrafo, feito com o passar dos anos e com muitos milhares de imegens efectuadas em todo o tipo de condições e que esta retrospectiva mostra. É isso que lhe dá uma coerência e solidez que é justo referenciar. São 40 anos de fotojornalismo e assinalam a doação do seu espólio fotográfico à Câmara Municipal de Lisboa.

Apesar da sua ligação ao fotojornalismo, por vezes requerendo este uma imagem mais formal e informativa, Alfredo Cunha nunca deixou de experimentar caminhos mais artísticos, cuja prova pode ser observada pela sua participação nos Encontros de Imagem (1998) e no CPF (2004), ou pela presença na Colecção Nacional de Fotografia. Por isso as imagens apresentadas no Arquivo Fotográfico são também um olhar sobre a obra de um dos mais marcantes fotojornalistas portugueses, onde as pessoas são fotografadas com uma força que a boa impressão (D. António Ribeiro 1991 e Quartel da Matola 1993), o momento certo e os olhares captados potenciam (Pitões das Júnias 1982). Sob o ponto de vista da impressão laboratorial há ainda que destacar a excelente interpretação do olhar do fotógrafo por parte de quem imprimiu as imagens. São também imagens que expressam uma das qualidades de um fotojornalista – a cumplicidade e a dignidade dos retratados (Romaria, Marialva 1995, Fábrica de Sinos, Porto 1995). Estas qualidades, juntas com um timing preciso, levam-nos ao homem que carrega o cesto de uvas (Vindimas Douro, Pinhão 1997), uma imagem de uma força imensa, que reflecte muito do olhar de Alfredo Cunha.

Mas, apesar de tudo, Alfredo Cunha nunca deixou de experimentar outros caminhos técnicos ou estéticos. Disso são exemplo as suas paisagens do Douro, em cor, integradas na Colecção Nacional de Fotografia. Ou o olhar mais moderno, com recurso ao preto e branco aqui presente (Praia de Dili, Timor 2006). Aliás Alfredo Cunha reconhece isso ao afirmar “fotografei em vários formatos, com várias tecnologias, com as mais diversas influências”. É isso que dá consistência ao seu trabalho, ao mesmo tempo que traduz a consciência com que as opções são tomadas.

Esta exposição, bem montada, com ritmo, onde se conseguiu conjugar várias épocas e vários olhares, deve também conduzir-nos a uma interrogação de ordem cívica. No texto de apresentação, Alfredo Cunha afirma que “às vezes olho para estas fotografias e penso que o tempo não passou: o país neorealista dos anos 60 ainda existe, para lá das auto-estradas, para lá dos centros comerciais, para lá das periferias das grandes cidades. Por vezes interrogo-me: Será que continuamos no mesmo sítio? Não sei porque é que não saímos daqui, desta pobreza, desta melancolia, desta lassidão que parece tolher-nos os movimentos, que nos impede de avançar.” Para além de fotógrafo, com este texto, Alfredo Cunha demonstra ter uma atitude cívica interventiva. Fez-me lembrar uma frase da sua obra Disparos – “fotografar é recolher dados. Mas não sou um fotógrafo imparcial”. Em tempos de grande consumo de imagem, vale a pena ver e pensar. Até 8 de Setembro.

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