terça-feira, 14 de julho de 2009

O trabalho incorporado na criação artística como factor de valor

Para Marx – hoje relançado, ao menos como analista dos sistemas económicos, indispensável à própria compreensão da lógica capitalista – o valor das coisas resulta do trabalho incorporado nelas. A raridade e as leis da oferta e da procura são subsidiárias. A génese do valor reside na quantidade do trabalho incorporado.

Dito isto - de forma tão simplista e superficial, claro – compete-me trazer aqui, então, o meu ponto de vista marxista (talvez fora melhor dizer marxiano) nesta matéria para falar de arte. Não porque politica ou filosoficamente o seja, marxista, mas porque essa formulação – perante a degradação do valor do trabalho incorporado no campo da criação e da produção artísticas – me parece oportuníssima!

A massificação da produção “artística” nas sociedades contemporâneas, longe de representar a democratização da criação artística (duvido mesmo que a criação em si possa ser democratizada) é um processo de degradação acelerada da produção artística. A ideia de que todos e cada um, sem preparação prévia, sem apetrechamento técnico específico e a mais das vezes sem sequer uma centelha de talento, pode expressar-se artisticamente (lá isso pode!) fazendo disso (isso é que não faz!) produto artístico é o maior inimigo de uma verdadeira democratização das artes, que é, deveria ser, o usufruto da criação de que apenas alguns – dotados, mas sobretudo preparados – são realmente capazes. Concursos como “Atreve-te a Cantar”, onde a mediocridade substitui qualquer critério de auto-exigência, muito têm contribuído, ao nível da população em geral, para fazer crer que a arte está ao alcance de todos e, pior – muito pior –, como resultado de mera vontade pessoal e, vá lá, uma pouca persistência, muita sorte e um estúpido sorriso de descontracção na execução da coisa!

Porém, se este fenómeno é próprio e “naturalmente” resultante de uma sociedade de consumo - em que a perversão não reside só no exagero do consumo em si mesmo, mas tanto ou mais na valorização da quantidade de consumo como factor de determinação da importância, grau ou estatuto da pessoa - é muito mais preocupante a tendência para contaminar certas elites com esta mesma praga ideológica, onde a “criatividade”, a “originalidade” ou a “imprevisibilidade” (que, a mais das vezes, é, afinal, tão previsível!) são a medida. Para fazer arte, à luz destes cânones pósmodernistas e conceptualistas, bastará o talento (duvidoso) que se atribui a esta ou aquela expressão. Sobretudo no domínio das artes plásticas e das artes performativas, sobretudo no teatro, porque no canto ainda vai valendo o desafinar e na dança pode partir-se uma perna…

Neste quadro o conceito marxista do trabalho incorporado como valor da mercadoria (ao caso artística) parece-me extremamente útil para ser recuperado e medir com materialidade objectiva o que é e o que não é arte. Eu, que nada sei de fotografia, posso ter a sorte (o acaso) de bater uma chapa absolutamente divinal, quiçá superior a uma de Sebastião Salgado, que isso não faz de mim um fotógrafo de arte. Porque onde em mim há acaso e arbitrariedade, nele, além da sensibilidade (muita), há o domínio das técnicas e, nestas, a prevalência de uma enorme quantidade de trabalho incorporado em anos de aprendizagem, aperfeiçoamento, treino. O que em mim pode ser, na melhor das hipóteses, expressão sensível de alma (aceite-se a terminologia romântica) num golpe de sorte, nele é procura, experimentação, decisão consciente.

É por isto que, muito sinceramente e sem preconceitos de modismos ignorantes, quando vejo umas pontas de cigarro dentro de um copo de água feitas “instalação artística” me rio a bandeiras despregadas, do mesmo modo que, embora não fazendo o meu gosto, respeito e me inclino perante o trabalho paciente, técnico e pormenorizado de um desenho do Medina. E é por ser tão flagrante este paradigma idiota que prevalece sobre o valor do trabalho incorporado e do trabalho incorporado como valor em arte que aqui resolvi trazer isto à liça…

De resto, bem lá no fundo, o desvario do capitalismo financeiro super-especulativo que o levou a si mesmo à mais estrutural crise económica de que há memória e para que, como o tempo mostrará, já não há remédio, é, em tudo identificável, no campo da arte, com a super-especulação de produtos inexistentes enquanto tal: um pseudo-objecto artístico resultante de arbitrariedade e do acaso de composições sem norma e sem trabalho incorporado é em tudo semelhante aos títulos do over-gambling dos “produtos” financeiros… Ambos – este no campo da economia e do material, aquele no campo da criação e do imaterial – são meras expressões da ideologia neoliberal, mesmo quando cuidadosamente travestida de preocupação social e/ou roupagem de uma certa esquerda politikamente muito correkta…

Saturado o mercado do vazio dos produtos de rendimento fictício, inflacionado, a partir de uma não-produção – leia-se de uma não-representatividade material: sem trabalho incorporado nem matéria prima concreta – seguir-se-à, mais tarde ou mais cedo, no domínio das artes um mesmo destino de esvaziamento desse “valor” de certos subprodutos artísticos. Em breve, estou absolutamente certo disso, a reflectir-se desde logo no carácter também especulativo das artes plásticas hodiernas; e, a prazo, na própria avaliação com que, actualmente ainda, estas manifestações “artísticas” são intelectualmente avalizadas pela crítica comprometida (comprometida com interesses e capelinhas) e por uns quantos decisores amigados com o poder político…

Criação artística sem trabalho incorporado, sem domínio factual de técnicas específicas, sem dispêndio de tempo e energias na preparação e na execução, criação artística não suportada em conhecimento próprio, é, quando muito, um ensaio de talento para um percurso artístico que só se pode fazer com suor e com tempo. O talento – indispensável, é certo – não é mais do que a faísca que incendeia todo o combustível que o trabalho é.

Muito prosaicamente, como dizia um velho electricista meu conhecido: “se o teatro desse choque não havia tanto malandro em cima de um palco!”…


Castro Guedes, encenador

Publicado na revista “mealibra” nº 23, 3ª série, 2009

7 comentários:

  1. Colocar esse link neste forum é quase uma provocação

    Não me considero artista, mas sei reconhecer noutros essa "qualidade". E são muitos, com maior ou menor formação formal, com maior ou menor dedicação ou esforço no processo. Como em muitas outras actividades criativas ou intelectuais a quantidade de trabalho não é proporcional à qualidade.

    De qualquer forma, o texto defende uma visão quase elitista em relação à produção artística de que não partilho. A capacidade de criar arte é acessível a um maior número de pessoas hoje, do que anteriormente. Basta ver que, de forma genérica, a produção artística é maior em países mais afluentes e sobretudo naqueles em que há um maior acesso à educação ou exposição às diferentes vertentes artísticas. De alguma forma, as pessoas são passíveis de serem sensibilizadas à arte e à cultura. Não me parece que seja um dom tão raro assim.
    Obviamente o "ruído" aumenta de forma proporcional. Mas isso é mau? Retira valor aos bons trabalhos? Retira valor económico? E o que tem isso a ver com arte?

    Numa abordagem mais ideológica ao texto, causa-me alguma repulsa o argumento "tempos modernos". É curioso a frequência com que se recorre a este argumento. É inegável que cada tempo tem os seus problemas, mas o problema nunca é o tempo em si. O actual é mau e o passado é que era bom? Porque sim? Porque as pessoas antigas eram diferentes? Não me convence. E o que conheço do Portugal do antigamente, não me convence mesmo nada.

    Em relação às critícas ao neoliberalismo, além de gastas, são redundantes. Não vejo que haja uma ligação entre a ideologia politíca dos grandes grupos/agentes económicos e a arte. Parece-me aliás haver um certo ateísmo de parte a parte: não acreditam uns nos outros . Essa ligação só me parece existir no pensamento paranoide e paralisado no passado do autor.

    Abraço,
    Alexandre

    comentário publicado por afic em www.forumfotografia.net

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  2. Muito curiosa, esta colagem da criação artística a ideais políticos como o Marxismo e Liberalismo. Mas se é interessante na forma como está redigida, esta forma de pensar a criação artística, não nos traz, no entanto, assim tantas novidades... O que também, não quer dizer que seja desajustada...

    O referido texto, é escrito por um encenador de teatro, alguém que, à partida, será muito mais entendido na matéria que eu, que nem sei representar. Além do que, para mim, os palcos dão mesmo choque. Por isso, relativamente às considerações ali feitas ao actual estado do teatro, nada poderei comentar, embora esteja algo inclinado a concordar. No entanto, é onde este artigo pretende generalizar, que lhe encontro algumas fraquezas de análise...

    Para começar, e concordando com o que também diz o aflc, há um certo "tique" elitista, principalmente nesta passagem: "A ideia de que todos e cada um, sem preparação prévia, sem apetrechamento técnico específico e a mais das vezes sem sequer uma centelha de talento, pode expressar-se artisticamente (lá isso pode!) fazendo disso (isso é que não faz!) produto artístico é o maior inimigo de uma verdadeira democratização das artes, que é, deveria ser, o usufruto da criação de que apenas alguns – dotados, mas sobretudo preparados – são realmente capazes."

    No entanto, mais uma vez, não a considero pessoalmente, totalmente desajustada, apenas "contaminada" ainda, com uma velha concepção de que a arte é só para alguns iluminados.


    Picacuca

    1ª parte comentário publicado por Picacuca em www.forumfotografia.net

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  3. Ora, arte, até alguns animais podem fazer. Já que se fala de teatro e instalações artísticas, veja-se por exemplo, as criações das aves do paraíso, suas representações e ninhos, intensamente treinadas, umas e outros, durante anos... Outra coisa bem diferente, no entanto, (e continuando numa linguagem político/económica) é o valor material dessa mesma arte. Porque, nem toda a expressão artística será digna de valor monetário, não deixando por isso, de ser uma expressão artística, não importando se o autor dela está ou não preparado/treinado nesse sentido. A arte é inerente ao ser humano, (e a alguns animais). Já o era, mesmo antes de ter valor monetário, e até de ser considerada arte.

    A instalação referida no texto (das beatas no cinzeiro) não terá certamente um valor monetário, mas nem por isso poderá, à partida e sem uma análise mais profunda das motivações/conceito do artista, ser liminarmente rejeitada como uma expressão artística válida...
    E porque o seria? Porque qualquer fumador, mesmo o mais intelectualmente "perro" deles, seria capaz de produzir tal obra?

    Não podemos ir simplesmente por aí. Ou, ao aplicarmos o mesmo princípio à fotografia, chegaríamos à conclusão que muitas das imagens conseguidas por grandes artistas da área, também seriam facilmente realizáveis por macacos, logo, não passíveis de serem arte. E, já agora, a propósito de fotografia, o autor do texto em causa defende-se bem, quando precisamente, salvaguarda que será o conjunto de imagens e trabalho para as realizar, (seja lá o que isso for) em detrimento do "feliz acaso" o que fará a obra.

    Ora, o mesmo se pode aplicar a todas as áreas de expressão, mesmo que apresentem como resultado final, apenas um cinzeiro cheio de beatas... Esse parece-me, portanto, um exemplo pouco feliz. No entanto, ele ilustra um antigo preconceito, de que, a obra terá que mostrar, ela mesma, as horas de trabalho a ela dedicadas. Como se um artista trabalhasse à hora...

    Mas, mais uma vez, noutras passagens do mesmo texto, vemos que essa ideia não é a que o autor pretende, de facto, transmitir... Em vez disso, e bem, a orientação do texto é mais uma reflexão crítica a essa mesma aparente "facilidade" com que se faz arte hoje em dia... Ou, por outras palavras, o texto acaba por ser uma crítica à superficialidade com que se olha para a obra de arte, olhando-a no entanto, também de forma algo superficial...

    Perde-se assim, a meu ver, uma oportunidade de realizar uma verdadeira reflexão sobre o assunto, ficando-se, uma vez mais, pelos seus aspectos mais fáceis e visíveis, caindo-se em parte, também na fácil análise do "isso também eu fazia"...


    Picacuca
    2ª parte comentário publicado por Picacuca em www.forumfotografia.net

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  4. Interessante este tópico que, no caso de suscitar respostas, como parece estar a acontecer, deveria estar na secção de debates. Interessante porque arrola uma série de verdades e meias verdades para, ao conjugar tudo e arriscar fazer a mistura numa calda ideológica com que o autor não parece estar familiarizado, acaba por descambar numa série de contradições em relação ao referencial anunciado e, no fim, pouco mais fica do que uma visão (como aqui já foi dito) elitista da produção artística como forma de democratização da cultura e da Arte, ou melhor, do seu "consumo", esse já ao alcance legítimo de qualquer "pé rapado falho de formação" que, se lhe fosse permitido o acesso ao processo produtivo, apenas teria capacidade para ser o "coveiro" da mesma. Ao menos, vale ao autor declarar que não é marxista, o que nem ao menos se pode considerar original pois, ao que se sabe, Marx também não era.

    Detentor de uma sólida formação clássica de base, Karl Marx foi na teoria económica um continuador do clássico Ricardo e na filosofia um sucessor de Hegel, em cujas teorias se fundamenta o materialismo dialéctico. E, é curioso ver o autor afirmar que o velho Karl Mark, cujo Das Kapital muitos citam mas pouqíssimos leram, "é hoje relançado, ao menos como analista dos sistemas económicos(...)", quando nas teorias sobre o modo de produção capitalista (ele analisou outros, como o asiático por exemplo), a criação de valor, a mais-valia e as formas de apropriação da mesma, foi sobretudo um teórico. Analista, e "jornalista" nos moldes da época, foi-o sim quando acompanhou e escreveu sobre a Comuna de Paris, a Guerra Civil em França e Luís Bonaparte.

    Posteriormente, e consoante as várias ramificações entre os defensores dessas ideias e sobretudo das políticas a seguir à 1.ª Internacional, vários se foram apropriando e reclamando da herança marxista, até ao desmbocar no famoso realismo socialista e outras correntes mais ou menos parecidas, que já nada tinham a ver com a origem, e mesmo os conceitos de arte durante e nos priimeiros tempos após a Revolução de 1917.


    1ª parte comentário publicado por agomes em www.forumfotografia.net

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  5. Art is always and everywhere the secret confession, and at the same time the immortal movement of its time.
    Karl Marx

    Neste contexto, associar a incorporação de valor e a criação de mais-valia como o autor faz enferma de uma total incompreensão da teoria económica de Marx, que o próprio não aplicava directamente e de forma tão linear à Arte, e dos mecanismos funcionamento dos mercados numa sociedade capitalista, como ele os descreveu.

    O exemplo citado de Sebastião Salgado é disso prova, pois o acréscimo de valor deste fotógrafo, resultante dos anos de trabalho e estudo, etc., não se podem confundir com o valor incorporado pela quota parte da participação do mesmo para a feitura de uma fotografia. Caso contrário, teríamos que, por exemplo, se Sebastião Salgado produzisse a sua melhor obra em casa, esta valeria muito menos do que uma que o obrigasse a uns dias de viagem, pagamentos de hotel e refeições, para tirar num lugar remoto e que, por isso, mesmo que esta tivesse menos valor artístico, valeria muito mais do que a obra prima ou, na perspectiva do valor material, seria ela a obra prima e não a outra.

    Como disse de início, certos dos argumentos parciais do autor até são válidos, embora já bastante conhecidos, só que se confunde ao misturar tudo isso com lógica dos mercados de consumo, do consumismo e da Sociedade do Espectáculo que, curiosamente, tem como postulado o aparecimento das estrelas para consumo das massas sociais, dividindo a sociedade entre consumidores e criadores, só que, de acordo com Castro Guedes, o que está mal é que os criadores não sejam apenas quem ele acha que deriam ser e, ao dar os 15 minutos de fama a qualquer membro da turba, aqui del-rei que se está a acabar com a verdadeira democratização da Arte!!!!

    Desculpem qualquer coisinha, pois foi escrito ao correr da pena e sem voltar atrás para verificar se há alguma calinada, não falando já de baboseiras, mas isso certamente será desculpável em quem não tem uma educação formal para ser crítico do que quer que seja e, muito menos, escritor.

    Fiquem bem e boas mas, por favor, não matem a FOTOGRAFIA!!!

    2ª parte comentário publicado por agomes em www.forumfotografia.net

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  6. Pois é, a arte cair na rua é quase tão perigoso como certos "artistas" tentarem armar ao pingarelho a ditar quem é artista e quem o não é, e a meterem os pés pelas mãos em assuntos que não digeriram

    Abraços

    comentário publicado por alfarrob em www.fotografia.net

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  7. Eu não percebo este medo do elitismo. Talvez por isso as nossa elites sejam tão fracas, mas a verdade é que quando se argumenta com o elitismo normalmente reina uma pontinha de inveja por não atingir um determinado patamar, ou a crítica assenta numa atitude comudista de "deixa estar como está, porque fazer melhor dá trabalho e preocupações".

    Não vejo mal nenhum em se ser elitista, pelo contrário. Desde que a elite não seja um grupo fechado. Desde que essa elite esteja disposta a ajudar outros a pertencer a essa elite e a ascender a patamares do conhecimento mais altos. Agora nivelar por baixo, isso não!

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