sexta-feira, 15 de julho de 2011

Terraformada


"Terraformada", um outro livro de Pedro Letria, editado pela Assírio & Alvim, vem de certa forma na continuidade da "E.N.118" publicado já há vários anos. Se nesse primeiro livro o trajecto era definido a partir do sentido de uma estrada e dos momentos que o fotógrafo assinalava na paisagem, "Terraformada" parte de um facto histórico: a da fronteira de Portugal com Espanha, que decidiu percorrer acompanhado pela sua máquina.


O resultado é extremamente interessante. São simples fotografias de paisagem, começando no sul e acabando no limite norte, em Caminha. Há uma luz fria que acompanha constantemente estas fotografias outonais, sublinhando os castanhos e amarelos das árvores e o verde húmido. Ao folhearmos o livro, não é preciso muito tempo para compreender a verdade melancólica que lhe subjaz. Estamos diante de um exercício fotográfico, não sobre a nostalgia da natureza, ou sobre a procura do paraíso perdido — a estética que o caracteriza distancia-se disso de forma radical; mas sobre a dependência que a mentalidade urbana tem em relação a um certo conceito de paisagem. A forma como a história e a cultura se fazem contra a natureza, num permanente medir de forças com esta, coloca hoje o homem perante o dilema: a luta contra a natureza passou a ser a luta contra si mesmo, na medida em que é a sua identidade como ser vivo que é posta em causa. Não se trata apenas de uma identidade física, e dos riscos conhecidos da destruição da natureza. Trata-se muito mais da identidade psíquica e cultural, no sentido em que, à medida que a transformação da paisagem avança existe como que um empobrecimento identitário. Empobrecimento que se desenha na própria antropologia, onde entrou há muito em crise o estudo dos “primitivos”, e que a obrigou a orientar-se noutras direcções do estudo da cultura, nomeadamente a chamada antropologia urbana.


A paisagem, no entanto, está lá. Não estática, mas submetida ao olhar do homem que a vive, a cultiva e... a destrói. Pedro Letria consegue, neste livro exprimir um certo desolamento, uma experiência milenar de frente a frente com a paisagem como motor de reflexão sobre a vida. A fotografia nº 838, por exemplo, mostra-nos um estreitíssimo caminho de cascalho que se desenha na paisagem e se perde no horizonte da fotografia. A diferença entre o natural e o construído é aqui ínfima e subtil, mas a fotografia consegue detectá-la e apontá-la, como um sinal de comunicação da passagem do homem. Noutras imagens, como as nº 312 ou 425, a natureza surge plácida, como a grande companhia para a solidão ontológica com a qual cada ser humano se confronta, ao menos uma vez na vida.

Estas imagens revelam que o pretexto da viagem, o “seguir a raia”, é apenas um pretexto para esse face a face com a terra, e com a relação que os homens (um homem, o autor) estabelecem com esta. Mas é também um pretexto para uma viagem à sua própria identidade cultural, viagem onde fotógrafo e antropólogo por vezes se confundem.


Texto da autoria de Margarida Medeiros


Terraformada é também uma exposição patente no Centro Português de Fotografia, no Porto, entre 24 de julho e 25 de setembro.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Todos os comentários serão previamente aprovados pelo autor do blog.