segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Reflexões amorais em torno de bone lonely

Considero, sempre considerei, Paulo Nozolino um dos maiores e mais legítimos fotógrafos contemporâneos. Nas suas imagens vi sempre atmosferas de anjo caído. E os anjos caídos, como sabemos, estão entre o bem e o mal e assim continuam porque definitivamente sós, sem um deus que os amercie.

Bone Lonely, na sua crueza e ambiguidade faz-me lembrar atmosferas do imaginário, Moriyama nas suas fotos a preto e branco ou imagens de Araki que só conheço de livro. Coisas situadas, portanto, o que não acontece aqui nestes fragmentos quase intemporais desta mostra; mas imagens que me marcaram pela indefinida atmosfera de queda. O mundo, diz a antropologia contemporânea, é sempre a soma das narrativas de outros mundos inventados: uma soma aleatória de citações, de acordo com a aprendizagem e a vivência de cada um. Surge-nos sempre rodeado de palavras e de imagens alheias. É assim que o nosso corpo mantém em vida o espectáculo visível e é por isso mesmo que mundo, corpo e mente constituem um sistema.

Desde as décadas de 70 e 80 do século XIX que a evolução da ciência e das belas-artes, recusando estas o enquadramento do modelo renascentista e aquela o mecanismo de origem divina, sugeriu uma ruptura na representação e, mais do que isso, uma ruptura do olhar. Com a fotografia e o cinema caminha-se para uma fotografia que desestabiliza a arte horizontal, que introduz a vertical e perturba  a relação entre superfície e profundidade. E onde a noção de observador se altera.

Sabemos as brechas que estas reflexões e as novas noções de relatividade e alteridade provocam na concepção, ingénua ou não, de belas artes. Dois séculos de pensamento fortemente político produziram um modo de estar no mundo claramente ideológico, vivendo o homem comum inserido naquilo a que Pernícola chama o pensamento já concebido, já pensado e que apenas na era da comunicação se altera para um já sentido menos dramático mas sempre doloroso. Sabemos como o conceptualismo se isolou da diversidade do ser e afirmou para si a condução do olhar contemporâneo, na sua ânsia de desconstruir a ideologia nas grandes e pequenas coisas, negando a história providencialista, a contemplação quimérica ou a pluralidade do bem e do mal, impondo, em cenários de grandiloquência igualmente ingénua, a banalidade da existência, já libertada de Sartre.

Como uma complacente maioria também não acredito no génio romântico e acompanho Umberto Eco na sua crítica, posteriormente moderada, à teoria da representação: a obra vai absorvendo os olhares do tempo e da diversidade. Sei que, como em todas as coisas humanas, ao prazer da arte e da inspiração se juntam as demais venalidades da circulação que lhe acrescentam ou retiram valor. Ensinaram-me a não confundir o autor com a obra ou o processo. Mas guardo, como todos nós, as minhas excepções. Sempre liguei a imagem que Nozolino dá de si mesmo, a sua personagem aventurosa e contestatária, com a atmosfera das suas fotografias, o que será um pecado interpretativo, mas é também uma explicação. Trata-se sempre da aventura humana, de corpos e de ideias e para haver aventura é necessário que um continuado pessimismo abra janelas para o momento inesperado. No que guardei de um conhecimento breve registei essa mesma impressão, agitação, impaciência, uma brusca atenção a todos os pormenores. Fotógrafos como Paulo Nozolino guardam no imaginário impressões e retribuem com sentires, não com aconteceres. O que também é, ao que se diz, um pecado. Apropriam-se de sinais, mais do que de objectos. O que faz deles homens conscientes do sistema. E, por isso mesmo, os picos da moda de correntes e de estilos não preenchem as suas preocupações. Talvez por isso me lembre Moriyama ou Araki e, por vezes, o William Klein de Moscow ou Tokyo, se esquecermos o excesso das suas figurações. E também por isso mesmo, se compreenda porque, sendo refractário ao tribunal pós-moderno, tenha mantida, intocada, a aceitação unânime das suas imagens a preto e branco de contestação e alerta.

Bone Lonely constrói-se com citações, a atmosfera de cada imagem adensa a ideia do todo; a solidão do homem, de qualquer homem, a solidão do autor, são efeito dos erros de alguns, são erros históricos e nem a desincronização das imagens, pautando a eterna repetição dos males, responsabiliza todos. Ao contrário da gnose que ilustra as misérias do mundo imperfeito de Martin Parr ou a desestruturação dramática dos rostos de Thomas Ruff, as imagens de Nozolino não lamentam, não ironizam, não são indiferentes. Nem argumentam, outro pecado. Acusam.

Maria do Carmo Serén 



 

2 comentários:

  1. A propósito da separação artista/obra: esse é um dos "dogmas" já muito contestados da crítica de arte. E ainda bem que assim é.
    Na fotografia por exemplo... Onde se mostra o que, e como se vê, é impossível essa distinção.
    O Paulo Nozolino, porque é o artista de que aqui se fala, vê e mostra-nos o seu mundo, o mundo de Paulo Nozolino, não o de Araki ou outro artista qualquer. E embora posamos sempre estabelecer similaridades (até as poderíamos estabelecer entre Paulo Nozolino e quem quisermos, basta apenas que o consigamos justificar), a verdade é que mais nenhum autor viu, sentiu e transmitiu precisamente o que Paulo Nozolino viu, sentiu e transmitiu.

    O mundo de Paulo Nozolino, não é no entanto, um mundo fechado. Ao contrário, uma vez que, o que nos mostra são sensações, elas necessitam, além de mostradas, de ser sentidas por quem observa. Então, o mundo de Paulo Nozolino, passa a ser um mundo partilhado com quem o observa. Como aliás, a esmagadora maioria das manifestações artísticas... E se, continuando por aí, se poderá então estabelecer as tais pontes com quase tudo, nem por isso o olhar de Paulo Nozolino deixa de ser único. Transmitindo-nos (pelo menos como o sinto) ao mesmo tempo de uma tristeza magoada, e alguma esperança em qualquer renovação.

    Ao mesmo tempo que aponta o dedo para uma decadência invisível, espiritual, simbolizada através do mostrar de alguma decadência visível, no entanto sem chocar violentamente, apenas sugerindo, de forma dura, mas meiga... Sentida mas nem por isso pouco pensada, Paulo Nozolino faz-me sentir a zona intermédia do espírito humano. Nem demasiado negro, desgraçado, nem totalmente claro, totalmente feliz. Nem totalmente neurótico, nem totalmente racional. Mas sempre, uma sensação de insatisfação.

    O tomar de consciência de que se está a viver, de algum modo, do lado de fora de um tempo/lugar... Fora de uma paisagem. Que por sua vez, não está completa... Como todos nós?

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  2. o trabalho do paulo nozolino bem merece a nossa admiração

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