terça-feira, 20 de julho de 2010

A banalização do engano

Os concursos de fotografia só têm feito mal, muito mal, à fotografia portuguesa. Em vários momentos e com vários protagonistas. Pode parecer uma posição radical, mas se recuarmos até às décadas de cinquenta e sessenta do século XX, vemos como fazia furor o vazio das imagens, temperado com o típico do pobrezinho mas honrado. Nunca se fotografaram tantas mulheres da Nazaré, exportadas para os concursos realizados além fronteiras e nunca se registaram tantas crianças exoticamente descalças, quando toda a Europa descobria a sensibilidade da fotografia humanista. Este cenário prolongou-se décadas de setenta e oitenta, havendo uma natural quebra dos concursos, por falta de interesse, por banalização ou pela sua desadequação à realidade fotográfica e social. Salva-se, ainda hoje, a opção de classificar um fotógrafo pelo seu portfólio, mais difícil de conseguir que uma imagem isolada nesta era das máquinas que fazem quase tudo.

Morreram os concursos de fotografia? Claro que não. Estão de volta, mas agora num esplendor de oportunismo, pelo uso das imagens, de ignorância sobre o meio, que se expressa na redacção do regulamento, ou de falta de realismo, quando os prémios têm um valor inferior à simples participação. Só esta semana recebemos uma dezena de regulamentos, onde assistimos a que qualquer câmara, junta de freguesia, empresa ou grupo de amigos organiza um concurso. Porquê? Porque sai mais barato que contratar um fotógrafo, fica-se com mais imagens em carteira, até se pede em digital para mais facilmente usar, se não gostarmos das imagens, não há prémio, e se ninguém perguntar por nada, anula-se o concurso. É verdade, conhecemos casos, em que fotógrafos de profissão fazem um tão mau trabalho, que muitas organizações recorrem ao concurso para não ficarem comprometidas. Também é verdade que a culpa é delas porque não viram anteriores trabalhos do fotógrafo, garantindo a qualidade, ou exigiram a execução do trabalho em calendário impossivel de realizar, o que é frequente.

O primeiro passo para organizar um concurso é escrever o regulamento. Regra nº 1 não pensar muito, basta ir a um outro regulamento e copiar. Resultado, os regulamentos eternizam-se há anos, não compreendendo os organizadores de que a fotografia evolui. Daí a que alguns habitués sejam previsiveis, porque a redacção do regulamento determina o tipo de participação. Continuamos a pedir pseudónimos, dimensões, títulos, etc., como se não se conhececem algumas imagens concorrentes, mesmo algumas “inéditas”, como se uma obra não se exprimisse na escala e tenha de ser normalizada, como se o autor pudesse não usar títulos (será que estes organizadores nunca entraram numa galeria?). A única inovação está em pedir a imagem em papel e em suporte digital, de preferência a 300 dpi’s. E se alguns impõem temas específicos, indiciadores da utilização futura das imagens na ilustração de brochuras (a Câmara Municipal de Lagos pede Biodiversidade, Mundo Submerso e o Homem e o Mar, enquanto que os Amigos dos Açores pedem específicamente como temas as Águas Quentes Termais, o Calor da Terra, a Flora Microbiana (devem concorrer imensos fotógrafos com este tema!) e a Sociedade e o Aproveitamento do Calor da Terra), outros deixam o tema aberto em excesso, pretendendo-se “que as fotos sejam acompanhadas de uma frase que exprima o sentido da fotografia e o olhar deste sobre o nosso tempo e a sociedade", o que espremido não é nada e pode ser tudo, e que levou a que, num caso específico, a organização recebesse imagens de barquinhos, florzinhas, pobrezinhos, passarinhos e demais animais, etc, o que tinha imenso a ver com o perfil da entidade organizadora - Instituto Superior de Tecnologias Avançadas.

Há uns anos ainda se podia argumentar que os concursos serviam para os fotógrafos mostrarem os seus trabalhos. Hoje essa opção é feita na internet e um concurso para atrair alguém tem de ter prémios interessantes. Já não se pede este tipo de investimentos para receber um prémio cujo valor é inferior à participação. Hoje, a grande moda, é usar as imagens. "A entidade promotora do evento retém o direito de utilizar as fotografias submetidas para actividades relacionadas com o estudo, a caracterização e a divulgação do ISTEC, sem que tal implique o pagamento de quaisquer direitos de autor” (concurso ISTEC). Tudo isto, por um magnífico prémio constituído por uma máquina fotográfica com um valor de mercado de 179 euros! As fotografias naturalmente devem ser sempre originais e inéditas. Claro que ninguém se esquece de mencionar os autores das imagens em futuras publicações, mas garantem “estarem desobrigados do pagamento de qualquer remuneração ao autor” (Calores e Vapores da Terra - Amigos dos Açores), enquanto que os autores estão obrigados a permitirem a sua utilização no “site, catálogo, exposição, espectáculo, promoção do concurso, etc” (o etc. não é nosso e garante tudo – Concurso Pinto Lopes Viagens SA). Por seu lado o Instituto Português da Juventude (pasme-se… Estado) e a Federação das Associações Juvenis do Distrito de Coimbra organizam um concurso onde se diz que “a organização do Concurso poderá utilizar as fotos do concurso para divulgar o tema do concurso, e/ou outras actividades que não tenham directamente englobadas neste tema ” (percebem? é o que está escrito… para além da palavra fotos ser de duvidosa erudição), ou seja, em tudo. Este mesmo regulamento vai mais longe ao afirmar que cada associação “pode utilizar a sua imagem em qualquer iniciativa que desenvolva”. Excelente exemplo dado pelo Estado!

Exemplo da burocracia é Vila Nova de Paiva, onde a participação no concurso de fotografia implica a deslocação aos serviços camarários num local e horário definido, devendo o concorrente fazer-se acompanhar do bilhete de identidade e do cartão de contribuinte (!...) , para lhe ser atribuído um número de identificação “para protecção do anonimato”, ou seja, para poder participar. Depois desta trabalheira toda, ele que não se atreva a desistir ou de se sentir artisticamente desinspirado!

Nisto não há como as autarquias e até Regiões de Turismo. Vila do Bispo, no Algarve, promove um concurso de fotografia onde os trabalhos apresentados a concurso (todos, entenda-se) revertem a favor do município, reservando-se ao direito de expor, publicar ou reproduzir quaisquer dos trabalhos apresentados. Aspecto curioso é o facto de o documento que circula na internet ter um carimbo com a indicação de “aprovado por unanimidade” na reunião de 15 de Junho passado. Se a ignorância é unânime…

Mas existem outras opções mais criativas, como a “votação dos cibernautas” (concurso Fotouniversia), onde público altamente especializado (tal como na TV), vota e escolhe os vencedores. E não sendo caso único não deixa de ficar atrás do concurso promovido pela Câmara Municipal de Lagos (Lagos é Natural – 2010), onde o júri “será presidido por um elemento do executivo municipal, e por representantes das juntas de freguesia do Concelho de Lagos, de entidades públicas regionais das áreas do turismo, da administração do território, da cultura, das actividades e transportes marítimos, bem como dezena e meia de fotógrafos amadores e profissionais, e representantes das empresas patrocinadoras” (aí umas 50 pessoas, pensamos nós…). Assim vão os concursos de fotografia.



19 comentários:

  1. Não obstante este alerta, em cima de outros alertas já aqui dados, há sempre quem não se importe.
    De resto num país de xico-espertos porque é que os concursos de fotografia haveriam de ser organizados por seres diferentes.
    Por isso só temos o que merecemos e se aparecesse por aí gente séria a organizar concursos de fotografia, isso sim é que seria de admirar!

    dulac in forumfotografia.net

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  2. Gostava tanto de poder mandar esse link a certas entidades que organizam concursos....

    Este ano concorri a dois aqui da zoa de Castelo Branco... um deles não indicava quem era o júri nem quais eram os prémios.. Acabei por receber dois livros... Acho que o que gastei na impressão da foto não compensou... No outro era uma exposição + concurso... O concurso ainda não existiu e a exposição metia medo.. Mais de 500fotos sem qualquer critério de escolha, coladas sem nexo nem direcção.

    Acho que no artigo apenas faltou mesmo referir as revistas onde se cede autorização por 14 meses à empresa da publicação e seus parceiros. Revistas que por vezes fazem quase 25% da publicação com essas fotos. No final acabam por vender aos leitores uma mão cheia de fotos que estes já viram.

    deim in forumfotografia.net

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  3. Vão-me desculpar mas de momento só me dá para rir... o assunto é sério... a sério... mas eu só consigo rir

    rockas in forumfotografia.net

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  4. E que dizer daqueles componentes do júri, que a coberto do pseudónimo também participavam e arrrecadavam o prémio para si!!!! Isto passava-se (?!) até com fotógrafos conceituados.

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  5. Descaradamente vivemos num país de oportunismo e falsidade, mas como diz o ditado "ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão." Só cai na mão destes abutres quem quer.
    Adelino Oliveira

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  6. A única coisa que me apraz dizer: Bravo! Bravo!

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  7. Está tudo dito. Pergunto-me como é que ainda se organizam concursos e se enganam as pessoas... Para um prémio de valor inferior ao gasto no concurso prefiro ficar em casa... além do mais grande parte desses concursos até tem vencedor já decidido, só que fica bem meter tudo ao molho e tal

    nuno (CT1JQJ) in focomanual.org

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  8. Independentemente de concordarem, ou não, de serem adeptos dos modelos actuais do concursos, ou não, parece-me, na minha opinião pessoal, que esta é uma reflexão incontornável, mesmo para aqueles que participam e continuarão a participar activamente nos vários concursos existentes pelo país fora.

    rms in forum.oficinadafotografia.com

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  9. Embora reflexão seja dura, ou não viesse de quem muito respeito, parece-me que é um bom exercício de tentar colocar as coisas no "sítio".
    De facto, com tudo o que o digital e novas tecnologias trouxe de facilitação, a verdade é que, frequentemente, qualquer aprendiz de fotógrafo acha que uma originalidade, um bom efeito, etc., vale como manifestação artística.
    Esquecendo, quantas vezes, que atrás de uma foto bem simples, está uma longa reflexão, um longo aprendizado, que não contemporizam com facilidades ou acasos.
    É muito oportuno, para não dizer urgente, que comece a ser clarificado que fazer fotografia não é só disparar... É muito mais que isso, antes disso...
    Desabafos...
    Armando Castro

    Armando Castro in forum.oficinadafotografia.com

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  10. Respeitando e compreendendo o que foi escrito fica a faltar algo.

    O que se deve mudar?
    A crítica está feita a quem elabora estes pseudo-concursos mas numa sociedade como a que temos hoje, procura-se o reconhecimento (ou o que isso seja) através de algo que possa ser exposto à vista de todos, mesmo que para isso tenham que se vender.
    Mas em outro artigo do vosso blog, chamam à atenção para algo que é mais importante, e que poderá ser uma das razões pelas quais alguém participa nisto, e cito:
    "Vivemos hoje num mundo extremamente competitivo onde a qualificação profissional, a educação e a cultura são investimentos fundamentais."

    É disto que falo. Não se sabe o que é fotografar (não confundir com o como), e a ânsia de se sentir realizado de alguma forma vai alimentando este tipo de concursos.

    Será que algo vai mudar? Duvido... Restam apenas alguns que ainda sabem o que fazer e como fazer.

    mochopachorrento in focomanual.org

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  11. Há alguns anos atrás realizou-se o prémio kokak, que foi o primeiro concurso feito sob a forma de portfólio, tal como hoje acontece com a bienal de vila franca de xira. Tal como o autor do texto diz deixam de haver acasos, e o fotógrafo é premiado pela coerência do seu trabalho e não por uma imagem isolada. Era uma solução, no entanto, em minha opinião não é pelos concursos que ninguém se afirma na fotografia.

    JAF

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  12. Não é bem o país que temos. Isto é mais uma onda. Atinge a todos. Um usa métodos para poder ficar com as fotos sem ter de pagar nada pela sua utilização, e os outros não querem gastar muito, vão pelo mesmo caminho.

    Gostei muito.

    Ana Ferreira in facebook

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  13. É duro, mas é verdade. Isto da fotografia digital, novas tecnologias, novas facilidades, anda um pouco a facilitar a vida a artistas" à la minute"...

    Armando Castro in facebook

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  14. infelizmente é o pais que temos..

    Claúdio Vicente in facebook

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  15. Na realidade pouco importa quem promove os concursos e como os promove.
    Basta não concorrer.

    Miralles in focomanual.org

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  16. Boa- tarde.

    Polémica velhota e aquase que me atrevo a dizer normal ou seja já vem sendo praticada ao longo dos anos......

    Para não ir muito longe nos seculos Recordava o 1º " Concurso Internacional de Lisboa "

    Foi uma das primeiras pessoas a brincar aos concorrentes aos Prémios....

    Sem alongar a conversa isto se a memória na me falha já lá vão uns Trinta e muitos anos...

    A mesma fotografia chegava a ganhar vários prémios em simultâneo e no decurso dos mesmos eventos...

    A questão pelo vistos é velhota só que a diferença é que agora fica mais gente a chorar....


    As razões são mais que evidentes ......

    Nameloja - Luz do deserto in focomanual.org

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  17. Mas então não entendem que "tem" de ser deste modo?
    Olha, inté aposto que os prémios num
    "futuro"próximo ,serão: DIPLOMAS /CNO/9ºANO!ou, se o Fólio for "mais convincente", talvez o CNO/12º.Digo eu....bem bom,não?Luis Reis

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  18. Houve agora um concurso, realizado e "patrocinado" por uma empresa de construção civil, identificada como "mecenas", em que os 70 pré-seleccionados pagavam 100 para concorrer (e já tinham pago antes a inscrição, tal como todos os outros).

    O prémio era de 7000 euros.

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  19. Só agora vi este post, e li o artigo relacionado.
    É uma situação algo complexa de analisar, mas por outro lado cabe aos concorrentes analisarem bem os regulamentos antes de participarem em tais "eventos".

    Muitos dos concursos que tive oportunidade de conhecer tem regulamentos abusivos e com cláusulas nulas ao abrigo da Lei e dos direitos de autor, talvez o problema (ou não) é não haver entidade reguladora/credenciadora e qualquer organismo/particular poder fazer um concurso, mais ou menos legal, mais ou menos oportunista e terá sempre "clientes", dada a quantidade de "fotógrafos" que existem a querem concorrer, nem que o prémio seja uma cybershoot.

    Mas tambem acho que internacionalmente, tirando um grupo de concursos de fotografia muito respeitados, se verifica um oportunismo enorme e até mesmo em alguns casos, verdadeiras burlas, onde qualquer gato pingado organiza um concurso com a inscrição do autor a exigir um pagamento.

    Isto não é só na fotografia, é em muitas outras vertentes. Cabe aos concorrentes saberem defender-se destas iniciativas, porque concorrer é livre, e se um concorrente decidir enviar obras a concurso em troca de um prémio menor, está no seu direito.

    A mim, mais que um clausulado nulo que poderá no máximo acarretar graves prejuízos à organização de um concurso, caso o concorrente esteja a par da Lei e decida "defender-se", é o facto da maioria dos concursos terem um juri de qualidade muito duvidosa. Raramente se verifica um painel de juris com formação superior em arte e fotografia, ou foto-jornalistas seniores, ou seja, com formação que lhes permita uma análise autorizada e especialmente "isenta".

    Rui Pires in focomanual.org

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